Um defeito de cor ©
Categoria: Literatura

(PSiu: Em homenagem ao Dia Nacional da Consciência Negra)

Preciso contar uma historinha que ilustra bem o que eu chamaria de racismo cordial. A personagem da história é a Madrinha Fia, que tem um “defeito” de cor: é negra. Por conta disso, deve trazer nos genes a herança atávica do preconceito. Conhecemo-nos desde sempre e desde sempre nunca a vi de cabelos à mostra, e, sim, escondidos sob lenços. A Madrinha Fia estudou pouco – creio que nem mesmo o ensino fundamental foi concluído. Sempre que vou à casa dela, lá em Buriti Alegre, alegro-me de encontrá-la do mesmo jeito de sempre: alegre, risonha, saudosa das nossas travessuras… Ela acha que eu sou muito inteligente, muito estudioso, e alardeia isso com entusiasmo para as duas filhas – filhas que já são mães. Pois bem. Lá no tempo da nossa meninice, um belo dia aparece na cidade uma prima (na verdade, prima de uma prima) vinda de Goiânia. Alguém vindo da capital constituía novidade absoluta para a nossa vidinha pacata, de quase nenhuma novidade. Ficamos alvoroçados. A prima de Goiânia era falante, desinibida, articulada, cheia de astúcias… Nós éramos toscos, abobalhados, cheios de espanto por qualquer bobagem… Devo dizer que isso de ser tosco, abobalhado e cheio de espanto vale mais para mim. A Madrinha Fia era mais esperta, como prova a historinha que, enfim, conto. A prima de Buriti e a prima de Goiânia estavam acertando um passeio. Na nossa (ou minha) ingenuidade, acreditamos que todos estaríamos incluídos no passeio. Estávamos animadíssimos. Já de saída para o tal passeio, a prima de Goiânia solta esta frase: “A bolsa vai?”. Não entendi nada, mas a Madrinha Fia entendeu tudo e rápido: a bolsa éramos nós dois e, no caso dela, além de se sentir companhia indesejada, a frase foi lida também como manifestação de preconceito. Sentimentos de rejeição me fazem muito mal, mas naquela situação eu só conseguia rir gostosamente de tudo, quem sabe se até por pensar que a “bolsa” era somente a Madrinha Fia – e ao me sentir fora do alvo da exclusão, quem sabe se não estou confessando um preconceito que eu também tinha ou, se não tinha, achava natural…

© Nota de canapé: Livro de estréia da escritora mineira Ana Maria Gonçalves. O livro, um catatau de quase mil páginas, foi muito elogiado.


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