Sem enfeite nenhum ©

Categoria: Literatura

Tags: adélia prado, conto

Um dia na vida de todos nós cabe – acho – em poucas linhas. O meu cabe. Senão veja: seis da manhã, hora de acordar (com música, boa música), o banho, a barba, escovar os dentes, a roupa, a pasta, a parada de ônibus, a galeria, o café, a leitura por uma hora, o elevador, bons-dias, ligar o computador, rabiscar algum texto, espiar uns pixels de estimação, ler informativos internos, hora do trabalho (“Mas já? Será que não tem notícia nova?”), antes mais um café, não dá mais pra adiar, hora do trabalho mesmo (“Quem foi que inventou isso? Mas vamos em frente!”), meio-dia, almoço no restaurante Green’s, flanar um pouco pelo setor bancário, voltar pro trampo, ler notícias novas, um café antes de retomar o trabalho, mais uma olhada na internet, “Ao trabalho, Tarlei”, seis da tarde (Oh! alívio!), “Até amanhã, meninos! Bom descanso!”, ir embora a pé (“Tem que correr, tem que suar. Vamos lá!”), o caldo no restaurante Green’s, o apartamento, TV, um danone, uma maçã, uma água de coco, mais TV, leituras baldias, sono, escovar os dentes, um copo d’água, dez da noite, hora de dormir. E começa tudo de novo, com variações pouco relevantes nos fins de semana. Dito assim a seco, sem enfeite nenhum, parece uma vida em preto-e-branco. Mas não: conforme o jeito de olhar, o que parece sem cor nenhuma esconde um monte de pequenos arco-íris. Eu garanto.

© Nota de canapé: Texto em prosa da grande Adélia Prado.