20
nov/14
Cais ©
Quem se entrega ao “imprudente ofício de viver em voz alta” (Rubem Braga), quem sucumbe ao imperativo de estar visível a todo momento, quem vive de lançar fios de si nessa rede sem fim, vai se defrontar, mais cedo ou mais tarde, com este dilema: ou a pessoa enjoa da brincadeira ou os outros enjoam da brincadeira da pessoa. O certo é que isso de ir “documentando o ócio para o público” (Alcides Villaça) acaba virando uma segunda natureza. E “como tem uns que gostam, e achar leitor não está fácil” (Alcides Villaça), a gente vai ficando. Porque é inegável: “A sensação de que alguns comentários corresponderam a uma forma de encontro não é descartável. Isso fica, aqui ou nalguma outra nuvem” (Alcides Villaça ligeiramente modificado). Agradeço muitíssimo pelo tanto que me fica dessa navegação despretensiosa que iniciei lá no dia 9/5/2010. Creio ter sido um bom timoneiro para o meu barquinho. Um bom timoneiro, no entanto, sabe a hora certa de ancorar. É o que faço. Mesmo ancorado, meu barquinho continuará ao alcance de qualquer navegante à deriva que nele venha aportar, auxiliado pelos poderosos tentáculos do Google.
Volto ao que disse o poeta, crítico e professor Alcides Villaça: achar leitor não está fácil. Daí que não posso correr o risco de cansar minha meia dúzia de leitores fiéis e menos ainda a outra meia dúzia de leitores casuais. Isso nunca. Afinal, foi essa dúzia de leitores que não me deixou navegar sozinho. Sendo certo que não se consegue ser interessante o tempo todo, a ancoragem é mais que prudente. São quinhentos e um textos baldeados para o meu barquinho. Não é pouca coisa. Uma parte do que baldeei deu em quase nada. Outra parte deu em nada mesmo. Desexplicando melhor: parte do que escrevi deu em Quase Nada, livro de crônicas – ou quase! Quase vexado, e porque o Natal já se aproxima, ofereço-o de presente ao raro leitor. Jura que aceita, mesmo sendo um presente de quase nada? Então é só clicar na imagem.
Agora, sim, é hora de ancorar. Antes, julgo necessário um pequeno esclarecimento. Na altura dos trezentos textos baldeados para o barquinho, ameacei seguir navegando até pescar nas águas da palavra mil e um textos. Cheguei a quinhentos e um. Outros quinhentos? Talvez daqui a algum tempo e em outro espaço. Se isso acontecer, o raro leitor terá notícias de que de novo me fiz ao mar. Agora, enfim, me recolho ao cais. Ancorar é preciso.
© Nota de canapé: Belíssima parceria de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos.
17
nov/14
A arca de Noé ©
O escritor Alberto Manguel retratou os críticos literários como sendo “(…) pequenos Noés que, diante do dilúvio do esquecimento (…), lutam para salvar em suas frágeis arcas de papel um certo número de animais prediletos”. Penso que o retrato vale para quem quer que se obstine em preservar da voragem do esquecimento as miudezas que o correr da vida costuma condenar ao naufrágio. Assim me sinto: um pequeno Noé salvando acontecimentos baldios do dilúvio que submerge o vivido em vagas lembranças – ou no total esquecimento. Navegando meio sem bússola, vim recheando minha arca de nonadas. De nonada em nonada, somo, hoje, quinhentos fragmentos de vida recolhidos com o anzol da palavra para a minha arca – toda ela carregada de textos leves, breves, com o contrapeso de um ou outro acontecimento mais triste. Meu ofício é baldear para a minha arca os desperdícios que bóiam no imenso mar do cotidiano em que a vida se espraia. Nela minha arca ponho um pouco de quase tudo: reflexões breves, acontecimentos baldios, memórias do outrora, memórias do agora, flagrantes do incessante desfile da vida, enfim, um pouco do que compõe o vasto arco do viver, nele cabendo miséria e maravilha, o banal e o fenomenal. Embora já bem cheia do que venho recolhendo, minha arca continua navegando leve pela superfície do cotidiano. E meu olhar de Noé se deixa fisgar por todo acontecimento com destino de desimportância. Tudo aquilo que se exibe quase invisível nas ondas do cotidiano tem destino certo: minha arca de Noé – também ela navegando quase invisível no imenso mar da internet.
© Nota de canapé: Parceria de Vinícius e Toquinho. A parceria batiza também o antológico disco da dupla.