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out/13
Coisas nossas ©
Tem certo tipo de gente que é um patrimônio das coisas nossas. Dona Maria, a senhora da limpeza do local em que trabalho, está nessa categoria. Ela adora coisar – quero dizer: ela adora usar o verbo-bombril “coisar” – o verbo das mil e uma utilidades. E como é bom vê-la coisando sem parar. Bem cedinho ela coisa as nossas workstations. E pra isso ela tira todas as nossas coisas do lugar. Dia desses cheguei justo na hora de ela coisar a minha mesa. Sugeri que, em eu já havendo chegado, não era preciso limpá-la – não gosto das minhas coisas fora do lugar. Dona Maria fez que não me ouviu. Tive de passar da sugestão à afirmação: “Dona Maria, hoje a senhora não precisa limpar minha mesa”. Falei de um jeito educado, mas senti que ela não gostou da interferência. Falou qualquer coisa e foi desarrumar outra mesa. E haja mesas para a Dona Maria coisar. Ela cuida de um andar inteiro. E ainda coisa os banheiros – masculinos e femininos. Certo dia, Dona Maria contou-nos de uma calçada coisada no banheiro. Preocupada, resolveu procurar o dono. Em plena sala da chefia, ela chega logo perguntando quem tinha coisado uma calça no banheiro. E mais: quis saber se não tinha alguém só de cueca. Se houvesse, sem dúvida era esse o descabeçado dono da calça coisada no banheiro. Gargalhada geral, inclusive da Dona Maria que, ao nos contar a peripécia, rolava de rir. Dona Maria chama quase todo mundo de coisinha. E adora ouvir as coisas que conversamos. Quanto mais besteiras dizemos, mais ela se demora limpando as coisas. Quem gosta de coisar é a Dona Maria, mas quem não tá dizendo coisa com coisa sou eu. Acabei me perdendo em meio a tanta coisa. Melhor deixar a coisa quieta, não sem antes dizer que a Dona Maria coisa muito mais do que consegui coisar – quero dizer: lembrar. O que coisei aqui é coisa pouca. Não sou bom de coisar. Que coisa, né?
© Nota de canapé: Um belo samba do Noel.
26
out/13
A mocinha do mercado central ©
Sou conhecido de um monte de atendentes, e gosto de muitos deles. Tem os atendentes de todo dia útil da Galeria dos Estados e do Restaurante Green’s. E tem as atendentes de nem todo dia da Casa do Pão de Queijo, da lavanderia e da revistaria. Espero não ter esquecido ninguém.
A moça de quem quero falar não é atendente, mas é uma simpatia. Vejo-a quase todo sábado e domingo num hipermercado de Brasília. A função dela consiste em auxiliar os clientes e seus carrinhos na esteira rolante. Além de exercer com visível gosto essa humílima função, a moça faz questão de cumprimentar todos os clientes. Tem sido assim todas as vezes em que passo por ela. A mim, que dispenso carrinho pelo quase nada que compro, ela lança o sorriso e o cumprimento sempre animado. Não é um cumprimento protocolar. É um cumprimento de quem realmente está desejando um “bom dia” ou uma “boa tarde”. É uma moça simples, sofre de ligeiro estrabismo, deve ter uns quase trinta anos. Reparo que ela é especialmente atenciosa com idosos. Não sei se, tímido como sou, algum dia irei além de apenas retribuir-lhe o afetuoso cumprimento. Bem que eu mereço conhecê-la melhor, saber como se chama, onde mora, de onde é, etc. Bastaria, talvez, um único gesto de aproximação, gesto que a timidez me tolhe. E se me aproximasse, faria igual fiz com uma copeira de um local onde já trabalhei: cruzando por acaso com ela na saída do prédio, não hesitei em dar-lhe um forte abraço. E sempre que me encontrasse com a mocinha do mercado central também lhe daria um forte abraço. Por ora deixo registrado o meu abraço virtual, não menos carinhoso do que o abraço que vier a se fazer real.
© Nota de canapé: Livro da querida Stella Maris Rezende, escritora mineira lá das Dores do Indaiá.