30
jul/13
Alta fidelidade ©
Fidelidade é comigo mesmo, em todos os domínios. Faz uns seis anos que corto o cabelo com o Da Silva. Antes dele, fiquei outros seis anos com outro de cujo nome não me lembro agora. A mudança para o Da Silva foi conseqüência da mudança de apartamento. Antes eu morava no finalzinho da Asa Norte. Agora sou um feliz morador do comecinho dela. Nesses seis anos de fidelidade ao Da Silva nunca fomos além de conversas bem casuais e quase sempre em resposta a algo dito por ele na tentativa de puxar conversa. Embora adore conversar, a conversa só tende a fluir se há repertório de interesses comuns. Gosto muito de ouvir. Falar, só com quem tenho aproximação, convívio diário… O Da Silva é sempre muito atencioso – e também observador. Às vezes não temos noção do quanto somos observados. Um belo dia fiquei sabendo pelo próprio Da Silva que minhas idas ao salão eram informalmente controladas. Ou seja, o Da Silva já mais ou menos sabia o dia em que eu retornaria. Por alguma razão, deixei de cumprir a regularidade pré-estabelecida e na primeira oportunidade ele revelou o “monitoramento” das minhas idas ao salão, dizendo ter estranhado meu não-comparecimento em certo dia. Querido Da Silva! Agora já não lembro bem por que, mas houve um dia em que conversamos mais. Nesse único dia eu fiquei sabendo que ele é maranhense, que está em Brasília desde 1978, que tem 10 irmãos (3 homens e 7 mulheres), que a mãe está com mais de 90 anos (mora no Maranhão), que o pai morreu aos 55, que ele é pai de 2 filhos (29 e 30 anos)… Com a minha estada em Brasília perto do fim, logo não terei mais os serviços do Da Silva. Bem provável que eu volte para o cabeleireiro de antes, o querido Fernando. Isso se eu tiver a sorte de ele ainda estar na profissão.
© Nota de canapé: Uma comédia americana a que não dei o prestígio da minha fidelidade.
27
jul/13
Ladeira da preguiça ©
Fujo de tudo que me tire do conforto da preguiça. Em certa medida, e contrariando o que acabo de dizer, sou um preguiçoso diligente: trabalho à beça (quase nunca falto, sou pontualíssimo), administro a casa, faço compras, vou à lavanderia, tenho vida cultural ativa e vários outros etcéteras… Apesar das tantas coisas que faço, movo-me sempre na zona da preguiça: exceto o trabalho, o restante faço (ou não) no meu tempo, no meu ritmo… Vai daí a notícia de um processo seletivo na área em que trabalho quase me tira do ócio criativo (releve!) que embala minhas horas vadias. Não há obrigatoriedade da participação, mas a não-participação não pega bem. Pegando bem ou não, decidi não participar. A essa altura não me agrada nem um pouco ter de pôr minha incompetência à prova. Ela merece ser preservada dessa exposição pública. Caso eu me dispusesse a participar, teria de sacrificar a leitura de toda manhã e, em lugar dela, me debruçar sobre assuntos nada palatáveis do universo bancário. Estudar em outra hora? Impossível. A única hora do dia em que tenho alguma disposição é pela manhã. Decidi que não valia a pena sacrificar o prazer em nome de um improvável êxito no certame. E voltei, feliz, para a ladeira da preguiça que me embala as horas vadias e baldias.
© Nota de canapé: Canção do Gilberto Gil.