O amanhã ©
Categoria: Música

Ataraxia, essa palavra que a mim soa pouco eufônica, designa um estado de alma que eu vivo buscando – a imperturbabilidade. O budismo tem sido meu aliado nessa busca. Chego lá? O importante é estar a caminho. As perturbações não vão deixar de bater à nossa porta, sempre. Mas, uma vez encontrando a casa em paz, é bem possível que percam muito de sua natureza. Apesar do que digo, me sinto um afortunado porque não são muitas as perturbações que me visitam.Olhando bem, talvez nem possa chamá-las perturbações. São, no máximo, contratempos mínimos e facilmente solucionáveis, não fosse o que tenho de melhor: a indolência. Sempre que algum contratempo bate à porta, pergunto, educado: “Não pode ficar para amanhã?”. Quase sempre pode – ou eu faço poder. De modo que há sempre no meu amanhã uma pendência trazida de ontem – que transfiro, quando possível, outra vez para amanhã. Hoje eu não quero nem saber…

© Nota de canapé: Um antigo sucesso da cantora Simone.

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Aqueles dois ©
Categoria: Literatura

Estendi minha fidelidade ao restaurante Green’s, que ia de segunda a sexta, até o almoço do sábado. No sábado gosto de almoçar um pouquinho mais cedo – pouco antes do meio-dia. Eu e um casal simpaticíssimo que me chamou a atenção desde o primeiro almoço. De cara pensei que fossem os dois, Sr. Carlos e Sra. Cecília, pais do dono do restaurante. Desconfiei disso porque todos os funcionários da casa iam falar com eles. E foi isso que perguntei à moça do caixa. Não, não são pais do dono. São clientes normais, fidelíssimos como eu, inclusive quanto ao horário. Encontro-os todo sábado, mas ainda não falei com eles. Gosto mais de observar, de entreouvir conversas, de participar calado – mas atentíssimo. O nome deles descobri graças a uma pequena delicadeza do proprietário. Na mesa que eles ocupam há uma plaquinha: “Reservado. Sr. Carlos e Sra. Cecília”. Achei lindo. Num desses encontros observei que, antes de se servirem, cada qual pede um suco. Ele, abacaxi com hortelã; ela, beterraba. Calculo que eles tenham coisa de 75 anos. Dona Cecília está com uns curativos num dos joelhos. Talvez uma queda acidental. O Sr. Carlos senta-se de costas para mim. Dona Cecília vejo bem. Quando saio, eles ainda nem começaram a se servir. Dona Cecília parece meio dona do lugar: dá ordens (severa sem deixar de ser delicada), manda ligar/desligar ventilador, observa coisas fora do lugar, chama a atenção dos garçons… Melhor dizendo: chama a atenção dos filhos. É um pouco assim que ela os trata; é um pouco assim que os funcionários os tratam – como pais. Tudo muito bonito de se ver. Vendo aqueles dois tão harmoniosos, tão entregues ao apetite de viver, não importando que estejam em pleno crepúsculo e a noite talvez não tarde a chegar, sinto vontade de aplaudir a Senhora Dona Vida coberta de ouro e prata.

© Nota de canapé: Um conto de Caio Fernando Abreu.

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