Felicidade clandestina ©
Categoria: Literatura

 

João, o Rosa, ”a mais silvestre Rosa do sertão”1, disse: “Felicidade, mesmo, só em raros momentos de distração.” Devo ser muito distraído porque sou muito feliz. Não sei bem por quê, só sei que sou — e muito. “A gente só sabe bem aquilo que não entende” – disse o mesmo Rosa. Não entendo a razão da minha felicidade, mas sei bem o quanto sou feliz – e isso me basta. É que a felicidade tem razões que a própria razão desconhece. Minha felicidade é feita de tão pequenas coisas, tão reduzida ao essencial, tão recolhida em si mesma, tão aquele camoniano “contentar-se de contente”, que é inevitável não me lembrar do lindo poema “O Haver”, de Vinícius de Morais, que tem versos lindos como estes, vindos de alguém que olha amorosamente para a vida vivida e vê o que fica, o que resta, depois de tudo: “Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura / Essa intimidade perfeita com o silêncio (..) / Resta (..) essa economia de gestos (..) / Resta esse coração queimando como um círio / Numa catedral em ruínas (..) / Resta essa vontade de chorar diante da beleza (..) / Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado / De pequenos absurdos, essa capacidade / De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil / E essa coragem para comprometer-se sem necessidade (..) / Resta essa faculdade incoercível de sonhar (..) / Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade / Pelo momento a vir (..)”. Muito lindos, não?

1 No dizer do poeta Affonso Romano de Sant’anna em crônica magnífica dedicada a Guimarães Rosa. A crônica, que pode ser lida aqui, foi publicada originalmente no livro A raiz quadrada do absurdo e republicada na antologia Quartas Histórias, organizada por Rinaldo de Fernandes.

 

© Nota de canapé: Livro que reúne contos e crônicas de Clarice Lispector com forte cunho autobiográfico. A crônica que dá título ao livro é um exemplo tocante de relato do que hoje se vem chamando “autoficção” ou “escrita de si”.

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